Pandæmonium


art by Peter Paul Rubens


art by Peter Paul Rubens

Eu acordo.
As vezes me pergunto se o mundo passa a existir somente quando abro meus olhos... mas eu não sou Vishnu.
Nada começa ou termina apenas porque eu desperto. Eu não sou deus...
Ao menos...por enquanto.

A minha cama e seus lençóis, de seda tão azul e escura, parecem virados feito uma ressaca no mar, aquelas que trazem corpos debruçados e pedaços de madeira para a praia. Deitadas sobre meu corpo, respirando com uma calma reconfortante, estão três dessas náufragas, cujos nomes eu confesso nem mesmo imaginar. Elas são tão lindas, tão macias e tenras... não desejo saber se são muito mais do que isso.
Claro... existem outras pessoas, deitadas próximas, no chão, nos outros quartos, nos móveis, não seria uma festa se não fosse assim... elas estão em toda parte, dormindo ou bêbadas demais para conseguir acordar, entrelaçadas como se tivessem nascido juntas, como se fossem uma e sentindo-se sobretudo tão únicas.
Posso sentir o cheiro adocicado do vinho tinto vertendo dos poros delas, impregnando o suor e suas respirações. Passo algum tempo apenas respirando esse ar viciado... Devagar afasto os braços trançados sobre meu peito, abrindo passagem entre toda essa carne, entre todos esses primorosos desvios e pecados. Agora são 17:00 horas, uma quarta feira e já é hora de acordar. Todas as grandes cidades do mundo são iguais nesse ponto, cheiram da mesma forma, tem o mesmo gosto e pedem as mesmas coisas. A overdose da cocaína é religiosamente igual em São Paulo ou Londres. O gosto da tequila aqui é tão saboroso quanto em New York, Roma, Tóquio ou Hong Kong. São todas iguais como se fossem uma... e sobretudo... sentem-se tão únicas.
O Sol desaparece da mesma forma sempre, em qualquer lugar e sempre anoitece.
Eu acordo. Minha cabeça está girando, eu poderia parar a sensação, se desejasse, mas o "sentir" é uma imensa parte da minha diversão.
Eu acordo. Enquanto sinto o mundo rodar meus olhos fixam-se na pintura no teto alto do quarto, gosto do estilo exagerado e intenso, das cores e sensações sinestésicas. Ela ocupa um considerável espaço, mas curiosamente, sempre passa desapercebida para minhas visitas. Imagino que elas estão ocupadas demais buscando a própria felicidade para notar o que existe ao redor delas.
A imagem é de 1617, Pan & Syrinx de Peter Paul Rubens, ela não deve nada a original no Staatliche Museen Kassel, é uma reprodução perfeita, e é dessa forma simplesmente porquê eu desejei que fosse.
Na imagem, Pan persegue uma ninfa, chamada Syrinx, que tenta veementemente escapar de seu toque. Creio que ela tinha suas razões para fugir.
Eu não sou deus... sendo absolutamente sincero, era um amador naquela época. Precisei de um bom tempo para aprender que não importa se você tem cifres, cascos ou patas de bode... o que conta é a mistura entre sutileza e força.
Um perfume gostoso, confiança e ser capaz de trazer o céu até os pés delas também são atributos importantes, porquê quando elas não tem mais forças para falar ou sequer manterem-se erguidas, nesse preciso momento, costumam invariavelmente a ignorar o bom senso. Elas entregam-se a uma força muito mais poderosa do que a razão... Doam-se ao prazer. Do mesmo tipo e da intensa qualidade que abateu esses corpos quentes, espalhados por todo o meu caminho até a sacada, é nela que sozinho, encontro finalmente tempo para olhar a cidade, ela é linda, exatamente igual a todas as outras.
As primeiras luzes sendo acesas, que divina invenção, a noite nunca mais foi a mesma depois delas. Desculpe-me se não fiz isso até agora, sei que lhe trouxe até aqui sem falar muitos detalhes, caminhando dentro desse meu emaranhado e tudo isso me parece tão divertido que esqueci de me apresentar formalmente.
Eu sou Pan... espero que suas magras aulas de história antiga tenham sido suficientes para entender o que acabei de dizer.
Já tive uma dezena de nomes distintos, mas todos são sinônimos, de um modo ou de outro, de prazer. Não sou deus como disse, mas com certeza me tornei um dos deuses e creio que o mais poderoso entre os que restaram.
Afinal não sobraram muitos reconheço... mas destes, sou eu que estou em toda parte. Não queria parecer óbvio, porém depois de trabalhar tanto tempo com diversão para as massas, é difícil não se tornar explícito.
Permita-me entreter você com a minha história.
A ausência da música, vozes e gemidos me faz perceber o peso do que acabei de dizer, eu realmente sou o prazer e sem dúvida estou sozinho. Quase todos velhos deuses estão mortos, o que não é exatamente surpreendente, a divindade exige seguidores, provas, atos, fé... Quantas pessoas você conhece que ainda fazem oferendas para o deus do vento oeste ou para o deus dos ferreiros?
Não muitos não é? Bem... e quantas pessoas você conhece que gostam de sentir prazer? Preciso continuar?

Ninguém acreditaria se fosse dito que Pan, o brincalhão, o vadio, seria um dos sobreviventes, que o bufão flautista se tornaria uma das últimas e mais poderosas divindades. Não posso deixar de sorrir ao lembrar que nunca duvidei disso.
Eles eram mais fortes, mais belos e rápidos... mas fui eu que sobrevivi a passagem do tempo. Fui eu que, de quase mortal, me tornei em uma força presente em cada um dos continentes, em cada uma das cidades, em cada um desses punhados de barro. O tolo Pan...superou Zeus, ele está morto e eu, o bode torto, continuo aqui.
Até onde eu sei apenas Ares e Pandora continuam vivos; o deus da guerra intocável por razões compreensíveis em um mundo tão tranqüilo quanto o nosso, e Pandora; que de uma curiosa, bonitinha e rasa coadjuvante atingiu o status divino. Vadia de sorte, gosto dela. Gosto daqueles olhos de esmeralda, dos cabelos incandescentes feito magma... da textura lisa e fria de sua pele marmórea.
Guerra, prazer e curiosidade... era razoável esperar que nós três sobrevivêssemos no final, nos éramos o mais próximos da humanidade.
Os mais humanos entre os deuses. Agora com sua licença, está na hora de ir. Tenho um encontro ainda hoje e preciso trocar de roupa.
Não leve tudo o que acabou de ouvir muito a sério, eu posso estar errado... você não precisa acreditar em mim e no que digo. Sempre há o livre arbítrio.
Afinal de contas, eu não sou deus...
Ao menos não por enquanto.


Moacir Novaes

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