Pandora



art by John William Waterhouse

Nessa parte do mundo são dezessete horas, treze minutos e trinta e três segundos.
Sei que o tempo medido dessa forma é uma construção humana, sei também que igualmente vão era o conceito que o tempo pertencia a Kronos.
Nenhum dos deuses nunca teve verdadeiro controle sobre o tempo, eles apenas fingiam ter.
Por serem incapazes de aceitar o imponderável e compreender que controle é uma ilusão.
Sei que o tempo é relativo e que passado, presente e futuro são um fluxo único.
Sei disso porque os vejo. Sei disso porque aceito que não estou no controle.

São dezessete horas, quatorze minutos e doze segundos.
Nesse preciso momento na cidade de Alicante, pai e mãe, que formam a família Ortega, avisam seus dois filhos gêmeos que eles devem desligar o computador e ir para a mesa comer. O prato servido é mero cozido com batatas assadas que acabaram de ser retiradas do forno.
O mero é uma espécie ameaçada de extinção; oficialmente desde 1948 setecentas e oitenta e quatro espécies conhecidas são consideras extintas.
Em Uganda, Francis Tamale, não sabe o significado da palavra extinção porque ele nunca foi alfabetizado ou ensinado, ele tem onze anos de idade e nesse segundo é retirado de sua casa para ser treinado e usado como soldado em uma guerra que ele também não sabia que existia até agora.
O peso do fuzil Avtomat Kalashnikova 1947 que ele irá carregar é de quatro quilos e oitocentos gramas armado.
Além de escritores suicidas e fuzis ak-47 alguns dos países que formavam a antiga união soviética também exportam petróleo.
O petroleiro russo Solov, por conta de uma ruptura derrama nesse instante setenta toneladas de petróleo cru entre os mares de Azov e Negro.
No Rio de Janeiro, Sérgio Tavarez Junior assiste a reportagem na televisão sobre o acidente com o petroleiro. Ele acredita que não tem qualquer relação direta ou indireta com os males do mundo e crê piamente que as coisas acontecem porque tem que acontecer, que elas ocorrem porque eu abri aquela caixa.
Sérgio está terminando uma ligação importante em seu celular, ele confirma o desvio de vinte e três milhões de reais que deveriam ser usados em licitações do governo para compra de medicamentos. Dezesseis segundos depois de terminar a chamada, ele desliga a tv no quarto e desce para a sala de sua casa. Ele abraça sua filha e esposa que o esperam para cortar o bolo de aniversário.
Dois milhões de crianças morrem no mundo todos os anos sem receber tratamento médico adequado para diarréia, o número de crianças mortas por desnutrição é superior, 3,5 milhões por ano.
Sérgio é um dos responsáveis por essas mortes.
Assim como eu.
O bolo sobre a mesa é de chocolate com amêndoas.
Esse era um dos sabores preferidos da francesa Sophie Elali, ela acaba de ter sua segunda parada cardíaca por overdose de ecstasy, os médicos em torno dela não dizem uma única palavra enquanto tentam mantê-la viva.


No último andar de um prédio no centro da cidade Ares acaba de matar uma mulher, não há qualquer alteração na temperatura ou respiração dele. Duzentas mil crianças morrem direta e indiretamente por causa de guerras.
Ares é um dos responsáveis por essas mortes.
Assim como eu.
Em outro prédio a quatrocentos quilômetros de distância, Pan está sendo vestido por uma suas acompanhantes, ela coloca um pouco de perfume de canela, ardido e doce, na gola de sua camisa.
São dezessete horas, dezenove minutos e dois segundos. Essa é a hora da morte de Sophie Elali, ela tinha vinte e dois anos.
Pan é um dos responsáveis por essa morte.
Assim como eu.

Dezessete horas, dezenove minutos e trinta segundos.
A primeira estrela aparece no céu.
Eu sou. A primeira mulher, a Eva, a Lilith criada a partir da própria terra.
Eu desperto. Após sentir o fogo dos deuses reverberar na minha alma.
Eu vejo. Tudo.
Eu sou. Todos.
Eu sinto. O que é estar presente em cada pensamento, em cada nova certeza dos homens. Afinal foi isso o que eu libertei... o terror do conhecimento e todas essas infindáveis possibilidades que acompanham a curiosidade humana. A morte da inocência, esse foi meu presente a humanidade, eu revelei as causas e conseqüências.
Estou presente em todos os vícios, em todas as guerras, em todos os sabores, em todos os atos. Eu sou a descoberta, o novo.
Sou eu que destruí cidades até os átomos e sou eu que carrega as armas.
Sou eu que fermento o vinho, as perguntas e destilo os venenos, as respostas.

Guerra, prazer e curiosidade... era razoável esperar que os três sobrevivessem no final, éramos os mais próximos da humanidade.
Eu era a mais humana entre os deuses.
É hora de ir, tenho um encontro ainda hoje, tenho todo o tempo do mundo mas desejo ir.

Eu acordo.
Tudo começa apenas porque eu desperto. O mundo passa a existir quando abro os olhos.
Não acredito que exista humanidade sem conhecimento...sem minha presença.

São dezessete horas, vinte minutos e vinte segundos.
Meu nome é Pandora.
E eu sou Deus.


Moacir Novaes

Comentários

Anônimo disse…
Moa, a forma como juntou o passado mitologico e o presente (no meu escasso vocabulário não encontrei um adjetivo que classificasse corretamente esse nosso presente)é perfeita, combina exatamente como Pandora e sua caixa, como Ares e as guerras, como Pan e a diverção. Você tinha razão, eu adorei.
Parabéns!