Doce Dulce



Eu não preciso olhar para o relógio para saber que são dezoito horas e quarenta e um minutos. Noção eidética do tempo é um dos benefícios da minha profissão, pode-se dizer que acompanha o pacote básico inicial que ainda inclui um profundo rancor, vícios e imoralidade.
Um dos efeitos colaterais de se saber o tempo exato das coisas é fazer você perceber informações sobre onde se está e quem é você, e a respeito desses itens:
Onde? Estamos em São Paulo, este é um lugar incrível. Uma das maiores cidades do planeta. São dezenove milhões de habitantes convivendo juntos, na maior parte do tempo forçosamente juntos, espremendo-se como ratos em grandes caixas de metal e concreto. Por aqui, a cada novo dia, cerca de vinte pessoas simplesmente desaparecem. Quase como se elas evaporassem no ar.
Deixe-me tornar isso possível e claro para você.
Pense em dezenove milhões de moedas... São muitas não é? É até difícil vê-las com precisão. Então, depois de ver, retire desse montante todos os dias, vinte moedas e considere que sempre novas moedas chegarão e se juntarão as existentes.
Você mal notaria essa pequena subtração, a menos é claro, que conhecesse as moedas uma a uma, nome por nome.
Sobre o quem...
E sei perfeitamente quem sou.
Eu sou um demônio... não O... mas Um deles.
Pleased to meet you. Hope you guess my name, sinto-me em casa aqui nessa cidade, sendo sincero... Sinto-me em casa em qualquer lugar, como um escritor disse uma vez, para onde quer que eu voe será o inferno. Para onde quer que eu vá estarei voltando para casa e falando nisso já é hora de ir e apagar as luzes ao sair, afinal, essa história não tem nada a ver comigo. Tudo o que fiz foi solta-la, deixar uma porta aberta. Meu papel foi permitir que ela saísse e há uma beleza evidente nisso, porque a partir desse ponto as coisas aconteceram espontaneamente.
Está escurecendo rápido. Chega a ser curioso ver as luzes da cidade multiplicarem-se, como uma cópia barata do céu, depois de uns poucos minutos as primeiras lâmpadas se tornam uma infestação, enchendo de branco titânio e neon o que deveria ser puro preto marfim.
O uso da eletricidade para iluminação, de forma efetiva, começou por volta de 1870. O espaço entre essa data e o dia de hoje é um período de tempo bastante considerável; tempo suficiente para, o controle do ato, ser aperfeiçoado exaustivamente pela humanidade, quase à perfeição, desde então, a noite deixou de ser escura e as novas gerações não sentem mais medo, elas perderam algumas coisas é verdade, não tem em mente como é a imagem do céu escuro, não tem idéia da quantidade de estrelas nele, mas elas sentem-se seguras quando o Sol se vai e isso basta.
As pessoas não se vêem mais como presas, perdidas ou perscrutadas por algum predador noturno, por uma fera que salte sobre elas com os olhos faiscantes e assustadores. A humanidade superou esse medo primitivo.
O que é uma pena...
O medo é material delicado de se lidar, matéria rara e uma imensa parte da minha rotina. É dificílimo incitá-lo atualmente. Anos de superexposição a guerras, cenas violentas e filmes ruins, com sustos previsíveis e garotinhas orientais com cabelos pretos desarranjados, podem ter causado isso. Roteiristas preguiçosos também estão inclusos na mistura, até onde sei há um inferno separado exclusivamente para eles...
Estou perdendo minha linha de raciocínio, não é? Peço desculpas, tomei pouco café hoje. Falava sobre o medo. Para gerar medo verdadeiro existem três regras de ouro. Ele deve ser possível, imprevisível ou incompreensível. Por experiência sei que nada é mais efetivo para incitar o horror em todas as pessoas do que essas três qualidades.
Somando-as, você terá em mãos terror verdadeiro, e esse sentimento tem um gosto e cheiro tão ácido. Encardido e insistente, fácil de identificar.
É terror o que Gabriel sente... Não é só medo. As mãos dele apertam compulsivamente o volante enquanto dirige imprudentemente rápido de volta para sua casa.
“Tudo ok... tudo ok” Ele repete enquanto atravessa seguidos sinais vermelhos, a despeito do veículo e da velocidade, tudo o que há nele é uma vontade primitiva e egoísta de fugir e se esconder embaixo de uma pedra, nada muito diferente em relação a qualquer outro animal pequeno e saboroso.
“Tudo vai ficar bem... Ninguém me viu sair do prédio. Eu vou ficar bem.” Mas isso não é verdade... Os prédios e as garagens tem tantas câmeras hoje dia, mesmo os antigos, então, daqui a alguns dias quando alguém der falta da namorada de Gabriel e perceber que ela sumiu deixando para trás um apartamento revirado e cheio de marcas de sangue, será uma dedução óbvia acreditar que ele foi o culpado.
Você não adora esse tipo de lógica simplista... Qual outra explicação haveria?
Os móveis quebrados pela casa e o sangue exigem o julgamento e culpa. As pessoas gostam de explicações fechadas e confortáveis e, principalmente, elas adoram culpados tangíveis. Gabriel sabia a verdade. Não foi ele ou ao menos ele acreditava nisso. Foi Dulce. Tinha que ser ela, nada que ele já tinha vivenciado confirmaria isso, nenhuma explicação lógica indicaria esse resultado, mas ele sabia que tinha sido ela.
Ele sabia. Cada vez que fechava os olhos podia vê-la. Cada vez que ficava escuro conseguia senti-la mais perto.
Dulce e Gabriel se conheceram no serviço três meses atrás, ela tinha dezoito anos, ele vinte e oito. Ambos trabalhavam juntos em um dos muitos tipos de subempregos terceirizados existentes nas grandes cidades.
Gabriel era o supervisor de Dulce. Ela não tinha nada realmente especial que o atraísse, certas coisas um homem como ele faz mais por vício do que por necessidade. Ele gostava da idéia de seduzi-la, como já tinha feito outras vezes com outras tantas “Dulces” e não havia nada de extraordinário nisso, para Gabriel essa era só uma forma de aproveitar a vida e preencher os espaços vazios que ele acumulava na alma.
Duas semanas depois de se conhecerem ele já tinha conquistado a confiança dela, já que era o primeiro homem que demonstrava algum tipo de interesse por ela. Diga-se de passagem, Dulce era muito bonita, apenas não tinha sido avisada sobre isso. Sempre calada, sempre tão quieta, era realmente de se estranhar que ela tivesse escolhido uma profissão onde precisasse conversar com outras pessoas por telefone.
Talvez tenha funcionado por conta da voz dela, muito suave ou talvez porque Dulce escutava as outras pessoas, era fácil para ela anular-se e escutar os outros. Estava acostumada a viver em segundo plano, como uma parte curiosa e escura do cenário. Um detalhe menor em um quadro. Acho que por isso lhe foi tão fascinante a idéia de se tornar o centro da atenção de outra pessoa.
Mesmo que ele não parecesse demonstrar interesse por aquilo que era importante para ela, como as aulas de fotografia, Gabriel sequer se deixava fotografar com ela.
Ele era reservado Dulce pensava. Por isso ela não podia ligar para a casa dele, em parte também porque não queria incomodá-lo e em parte porque ele tinha dito para nunca ligar, algo relacionado com a mãe dele não gostar do telefone tocando.
A doce Dulce não queria ser um incômodo. Essa era uma impressão constante em sua vida, achar que perturbava outras pessoas, então tentava diluir-se até mal ser visível. Dulce compreendia as razões dele. Ele precisava de espaço.
Mesmo sem poder passar os finais de semana juntos... Estava tudo bem, eles tinham as segundas, terças e quartas... Tinham os dias e tardes. Dificilmente as noites, mas estava tudo bem.
Se me lembro... As coisas deixaram de ficar bem em uma quarta feira, depois do expediente, na saída do serviço. A namorada do Gabriel, aquela que Dulce não sabia que existia, aquela que vimos no apartamento espalhada pelas paredes como manchas do tipo O negativo. Lembra dela? Pois bem, naquela tarde ela resolveu encontrar Dulce, aparentemente para esclarecer algumas questões e explicar que as segundas, terças e quartas também pertenciam a ela.
Dulce não trabalhou no dia seguinte.
Nem nos outros dias até a próxima semana, quando reapareceu, contudo havia algo diferente nela. Ela sentou-se em sua mesa como sempre fazia, com sua garrafa de água, seus livros e suas canetas coloridas, mas não posso dizer que Dulce ainda estava ali. Ela não se preocupou em justificar as faltas, dentro de seu novo espectro de visão, essa era uma preocupação bem pequena e relativa.
Próximo do final de seu turno, houve uma ligação que terminou com o cliente discutindo com ela e exigindo aos gritos falar com seu supervisor... Dulce teve um momento de silêncio absoluto antes do colapso, sem dizer nenhuma outra palavra, ela desligou a chamada, levantou-se e foi para uma das janelas. Havia um copo abandonado de café ali, refletido junto ao vidro, Dulce não pensou sobre quem teria deixado-o ali, ela somente observou o líquido escuro por alguns segundos. Já estava tarde, eram vinte horas, havia tantas luzes, ela não gostava delas... Intuitivamente não gostava porque elas pareciam fazê-la lembrar que lá fora estavam todas as outras pessoas, vivendo suas vidas, fazendo suas coisas.
“Como eu odeio tudo isso.” Disse baixo, mal deixando o som escapar. Ela abriu a janela, não era um espaço muito grande, mas ainda assim, podia-se sentir o vento da noite. A vista do décimo sexto andar era bonita... Não fosse por todas aquelas luzes.
No minuto seguinte, Dulce passou pelo vão da janela e ao fazer isso não existia um único pensamento dentro dela, absolutamente nada desde o momento da queda até o impacto brutal. Nada além de um ódio tão denso que você conseguiria cortá-lo com uma faca. Sentimentos nessas proporções chegam a ter peso. Não passam desapercebidos em nenhum lugar.
Gabriel não se sentiu culpado, ao menos, não o quanto era necessário. A namorada dele sequer ficou sabendo do que aconteceu na época. Isso não é o tipo de coisa que jornais comentam, acontece sempre, mas, para não “influenciar” outras pessoas, dificilmente toca-se no assunto.
Como se manter algo no escuro fizesse esse isso desaparecer.
As janelas passaram a ser vedadas.
A grande contribuição de Dulce para o mundo, se a história terminasse aqui, seria tornar um prédio um pouco mais seguro para jovens suicidas.
Mas eu não disse que terminamos. Disse?
Se o amor de uma pessoa pode manter-se vivo por gerações. Por que achar que seria diferente com o ódio? Uma das coisas mais fascinantes sobre esses sentimentos que mencionamos até aqui é a forma como eles são capazes de macular e impregnar as superfícies mais sólidas e aparentemente invulneráveis. O medo enfraquece. O ódio corrompe.
A primeira vez, depois do incidente, que Gabriel voltou a ver Dulce foi um encontro sutil. Ocorreu enquanto ele chegava em casa, ao passar pela porta e trancá-la. A experiência toda não durou sequer um segundo, mas ele podia jurar que Dulce estava ali, de pé na sala, imóvel, esperando por ele e que ficou ali até a luz ser acesa, para então, desaparecer.
Quando ele foi se deitar, enquanto caminhava para o quarto apagando as luzes do apartamento, teve novamente a sensação que a cada luz apagada alguém parecia se aproximar dele, na sombra de seus passos. Dia após dia a sensação foi se tornando mais forte. Gabriel só viu isso como um problema quando passou a acordar tendo a nítida sensação que Dulce estava ao lado de sua cama. Observando seu sono.
Ele acordava suando. Sem ar. Havia um vulto no quarto, ao menos ele pensava isso, e a imagem só desaparecia quando ele ligava as luzes. Ele comprou uma luminária e passou a deixá-la do lado da cama, no entanto, a casa ainda tinha muitas partes escuras. Logo Gabriel passou a dormir com as luzes ligadas e não somente em seu quarto. Toda a casa permanecia com as luzes acesas, depois de algum tempo ele nem mesmo tentava apagá-las ao sair de manhã, dessa forma, quando anoitecesse e ele voltasse para casa não haveria nenhum canto sem luz.
Essa era uma solução paranóica e temporária. Afinal ele ainda precisava fechar os olhos para dormir e agora quando os fechava via a imagem dela.
Seguindo a mesma lógica frágil e já confusa, o próximo passo pareceu simples, ele se recusou a dormir. Alguns remédios resolveriam isso e tudo ficaria bem até aqueles sonhos desaparecerem.
A privação de sono é um veneno sabe? Ao longo dos dias, com o passar do tempo fica difícil distinguir o que é real. O corpo pede para ser desligado, se isso não é feito de forma consciente, ele encontra um meio de apagar. Acho que Dulce sabia disso.
Gabriel até esse momento sentia apenas que estava tendo “problemas”... Ele não tinha medo, isso só ocorreu quando a namorada dele ligou chorando, dizendo em pânico que tinha alguém na casa dela... Falando que sempre tinha alguém na casa dela quando as luzes estavam apagadas. Ele sentiu medo quando saiu de casa para ir até o apartamento dela. Sentiu medo por não encontrá-la.
Ele sente medo agora, enquanto volta sozinho e corre em busca da segurança da sua toca com todas aquelas luzes.
Gabriel pára na garagem do prédio, balançando os braços e tentando fazer um dos sensores de movimento ligar as luzes, isso não ocorre, os sensores e as luzes de emergência estão em manutenção. Conveniente não é?
A única iluminação que existe vem dos elevadores em um dos cantos da garagem. Sem se preocupar em ser lógico ou manter um mínimo de dignidade ele corre até os elevadores e aperta várias vezes o botão para chamá-lo do oitavo para o piso da garagem. Nesse intervalo de tempo, enquanto via os números dos andares diminuindo, imagino que a sensação dele, boiando naquele círculo de luz fornecido pela lânguida lâmpada junto da porta do elevador, era similar a sensação de estar sozinho no mar, agarrado a um pedaço de madeira e rodeado por tubarões, esperando o inevitável.
Os olhos dele ficavam vasculhando compulsivamente tudo a sua volta, não havia sons, mas, de tempos em tempos ele pode jurar que viu algo se mover no escuro.
O elevador chega. Ele entra e enquanto a porta está se fechando, Gabriel vê uma garota caminhando entre as sombras dos carros na direção dele. Não é possível ver o rosto dela, está escuro demais. Deliciosamente escuro.
Gabriel não está realmente pensando com clareza nesse ponto. Ele aperta os botões do elevador, repetidas vezes seu próprio andar, esperando fazer a porta se fechar.
A garota vem na direção dele, sem dizer nada, sem pedir para que ele espere por ela. talvez por saber que se não foi antes, não seria agora, que Gabriel pensaria nela.
A porta de fecha, o elevador começa a subida. Os primeiros andares passam. Em dos cantos, uma das caixas de som toca uma música de Cartola. Bem baixo, o nome dela é “Preciso me encontrar”.
Entre o terceiro e quarto andar. Ocorre o som de um clique.
As luzes se apagam. Não há outro som. Nenhum outro som dentro daquele elevador.
O blecaute atingiu todas as cidades de São Paulo e mais outros cinco estados. Não há luz em lugar algum, nem vai haver pelas próximas horas.
Conveniente não? Fazer o que? Isso acontece, é sempre possível, às vezes imprevisível e normalmente incompreensível. Não olhe para mim... Afinal ratos vivem roendo fios e raios vivem caindo aqui e ali e meu papel em toda essa história foi bem modesto. A nossa doce Dulce é que fez tudo, acho que ela estará ocupada pelas próximas horas e satisfeita pelos próximos dias.
O que fiz, como disse, foi apenas deixá-la sair.
Nem me ocorre pedir que um dia ela volte ou que desça novamente.
Acho que ela está muito bem aqui fora e eu jamais desejaria que vocês ficassem sozinhos.
No escuro...

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