Minotauro



art by Emil Alzamora



Não há muitas luzes aqui. A maior parte da iluminação vem de monitores e telas.
Ela, a luz, é fria. Organizada e limpa.
O ar é pesado e continuamente refrigerado por dutos e tubulações espalhados por todo o complexo subterrâneo. Existe um chiado baixo, parecido com o barulho do mar. Não são ondas, nem o litoral, o som sibilado é o idioma das máquinas conversando com a informação, é o ruído do “faça-se a luz”.

Esses equipamentos enterrados precisam do frio, são centenas de servidores, computadores e circuitos redundantes, todos organizados simetricamente em uma topologia complexa que lembra a arquitetura de um labirinto.
Durante as últimas décadas o formato manteve-se inalterado, não importava se os componentes eletrônicos ficavam menores ou se computadores com metros reduziam-se em centímetros, ainda era um labirinto, com máquinas forrando cada parede. O espaço extra, aberto pelos avanços tecnológicos, era logo preenchido por mais componentes.
Novas partes. Novas peças.
Ao invés de diminuir, o lugar todo, ampliava-se sem mover-se.

Pandora, a deusa responsável por todo aquele sistema, chamava sua rede de Hidra.
A miríade de máquinas, assim como o próprio labirinto de dados, estava sob os cuidados de outra fera mitológica, o Minotauro.Pandora tinha certa simpatia por coadjuvantes e via, na figura desses excluídos do Olimpo, um reflexo de si mesma. Sentia-se, em parte, responsável por todos os caídos e desviados, por todos os malefícios e males que vagavam pelo mundo. Havia, sem dúvida, mais profundidade nesses antagonistas do que nos heróis e, por isso, Pandora preferia a companhia deles. 
Ela dava-lhes proteção, conferia a cada um desses arquétipos um propósito.

O Minotauro parecia ser a escolha lógica para administrar o labirinto de dados que servia Pandora. O único ser capaz de mover-se naquela quantidade impossível de informação sem se perder.  A fera insaciável que deveria ter nascido perfeita.  Sempre faminto. Sempre perdido.
Ele deveria ter sido um deus vivo entre os homens e, no entanto, foi aprisionado e esquecido.
Levou tempo até Pandora encontrá-lo e trazê-lo para seu labirinto, convencê-lo a vir não foi o problema. Ambos dividiam a incômoda sensação de ausência. Como se as histórias deles, em algum ponto, tivessem sido roubadas. O difícil foi ela notar como os dois sentiam falta de algo indecifrável em suas existências.

O labirinto era uma fantástica e nova Biblioteca de Alexandria. Tudo o que já tinha sido algum dia registrado estava ali. Todos os caminhos possíveis. Toda a história e teoria. Todas as portas.

As necessidades de Pandora e do Minotauro eram distintas e, talvez por isso, complementares. Era a soma desses dados que alimentava Pandora, se Deus faz refeições, o labirinto seria seu restaurante.
Ambrósia em forma de dígitos.
O Minotauro, por sua vez, não precisava de comida, não almejava o conhecimento, sentia apenas a necessidade do movimento.
Bastava-lhe poder transitar entre aquelas ilhas de bytes, como um tubarão que, para respirar, precisava continuar nadando.  A resposta, para ele, parecia sempre estar na próxima curva.

Sua figura era imediatamente curiosa. Alto, quase dois metros e meio, vestia-se com algo que parecia um kilt até a altura de seus tornozelos, longo e todo preto, na parte superior, essa roupa lembrava a aparência de um avental de açougueiro.
O tecido era formado por nanotubos de nitreto de boro, um material formidável, não conduz eletricidade e é tão resistente quanto diamante.
Os únicos móveis presentes eram uma grande cadeira e uma mesa onde existiam seis monitores. Havia também uma caneca de café, na mesa, ao lado das mãos dele.

Ele olhava os dados sendo atualizados nos monitores, parecia incansável, até mover uma das mãos na direção da nuca, sentia desconforto.
A dor era resultado dos últimos dias organizando novos arquivos, certamente, um incômodo muito menor do que aquele causado por um pescoço quebrado.
Ele ainda sentia essa dor, ainda lembrava-se de Teseu e o ponto mais aprazível de suas rotinas era saber que todos os heróis estavam mortos.

“Como é o gosto do café?” A voz manifestava-se em um dos monitores, seguida pela imagem de Pandora. A pergunta era sincera, ela já não se lembrava do sabor dos alimentos. Ele não respondeu imediatamente, virou-se e ficou encarando Pandora por alguns segundos, tentava adivinhar seu humor, ao menos, identificar se este ainda existia.

“Você sentiria um gosto cítrico com o café... E por fim ele se tornaria doce.”

“Compreendo.”

“Não Pandora, infelizmente, eu imagino que não. O que posso fazer por você hoje?”

“Você conseguiu acesso aos sistemas financeiros?”

“Sim, em todo planeta, todas as instituições.
O dinheiro do mundo está na sua bolsa de moedas.
Haverá um novo crash das bolsas como você deseja, e depois, como previsto, os governos do mundo venderão suas almas para sanar esse rombo. Criando assim um buraco ainda maior.
Os recursos que deveriam ser dedicados para prioridades comuns como educação e saúde, serão dados para empresas e bancos... E mesmo após o pagamento, será exigido desses governos que se tornem menores e mais responsáveis com seus gastos, enquanto as corporações privadas incham e ficam mais famintas.
Inevitavelmente, alguém irá questionar essa lógica, segundo a qual, quando uma empresa privada ganha o lucro é só dela e quando ela perde a dívida é de todos.
O círculo vicioso entre dívidas e lucros se tornará cada vez mais profundo e rápido.
O cenário que deseja estará pronto em poucos meses.
Você vai espalhar o caos na Terra.”

“Uma segunda vez.”

“ Países serão imersos em rebeliões civis, empresas afundarão em dívidas e governos fragilizados cairão como gigantes de vidro. Durante a tempestade, se desejar, você poderá comprar nações inteiras.
Curioso... Você raramente faz perguntas e, evidentemente, teria sido capaz de acompanhar o progresso de seus planos sem precisar me consultar.
Devo deduzir que só viria aqui se desejasse conversar, mas deuses não deveriam sentir dúvida.”

“Minotauro... Você sabe quantos morrerão indiretamente durante esses processos.”

“ Sim. Eu tenho as estimativas e, ainda assim, haveria um número maior de fatalidades se você simplesmente não fizesse nada.”

“Compreendo. O mundo será desfeito para ser refeito.”

“Sim... À sua imagem e semelhança. Amém.”

“Você parece insatisfeito.”

“Cauteloso é mais a palavra. Nós, durante nossas longas vidas, já vimos outros salvadores e boa parte deles terminou como ditadores. Além disso, confesso que não entendo porque dedicar-se a esse trabalho. Eu não odeio a humanidade, contudo e ao mesmo tempo, não tenho grandes expectativas sobre eles.
Nem mesmo deuses conseguem salvar quem não deseja o resgate.
Talvez tudo isso seja em vão.
Mas você é Pandora e imagino que sabe disso.
É isso que preocupa você não é? Que esses sacrifícios não se paguem.”

“Esperto Minotauro. Você deveria ter sido um deus.”

“Não... Eu deveria ter sido só um monstro melhor. Alguns nessa vida, você sabe, só desejam ver o mundo queimar.
De um monstro para outro... Você não será perdoada por salvar o mundo.
Tudo o que poderá fazer será conviver com o peso das suas escolhas até conseguir transcendê-las.”

“Eu compreendo.
Preciso ir agora Minotauro.”

“Sim, precisa e não se preocupe, seu segredo está seguro comigo.”

“Qual segredo?”

“Pandora...
A mais humana entre os deuses.”

A imagem de Pandora some do monitor que volta a transmitir códigos de dados. O Minotauro não retoma seu trabalho de imediato, perde algum tempo reclinando-se na cadeira, olhando para todas as possibilidades e caminhos que estão sendo abertos diante dele.
O mundo vai queimar. Ele está sorrindo ao pensar nisso.

“A mais humana entre os deuses...
O maior monstro entre os homens.”




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Moacir Novaes

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